Mandado no “Estica” do Dendê
“Há uns 12 anos, cumpri um mandado de intimação relativo a uma cobrança de 200 reais.
O endereço era na região da Praia do Cocotá. Avaliei que era um lugar seguro, embora a Ilha do Governador tenha muitas favelas.
E lá fui eu, de terno, procurar a rua. Me chamou a atenção a imagem dos prédios furados de balas. Descobri que me encontrava no ‘Estica’ do Morro do Dendê. ‘Estica’ é o nome que se dá ao acesso que o tráfico mantém no asfalto para facilitar a aquisição de drogas. É uma espécie de drive-thru da droga. Eu não fazia a menor ideia de que algo assim existisse a 300 metros do Fórum de Justiça da Ilha.
Concluí que não poderia continuar. Nisso, um cara apareceu e perguntou o que eu fazia ali. Notei que usava uma bolsa. Só que não era uma bolsa… meu olhar seguiu a alça até o fim, e deparou com uma metralhadora a tiracolo! Ao notar o meu susto, ele perguntou se eu havia gostado. Concordei que era ‘bonita’, mas que eu estava indo embora… Ele me cortou: ‘Não, você vem comigo!’
Ele então perguntou se eu era da polícia… ‘Oficial de Justiça’, respondi.
Em poucos minutos eu já estava sendo escoltado por seis caras com armas apontadas para mim. Me levaram por uma escada, e paramos numa laje. Aquele que parecia o líder perguntou por que eu estava lá. Respondi que tinha um documento para entregar a uma moradora, mas que, pelo visto, errara de endereço. Ele perguntou o nome dela.
Em seguida, começaram a confabular entre eles. Um queria trazer a mulher. Outros estavam na dúvida. Um outro repetia sem parar: ‘vamos levar ele pros pneus, vamos tocar fogo nele, fazer um churrascão!’ E eu, sem reação.
Decidiram enfim trazê-la. Foi uma cena horrível. Trouxeram ela pelos cabelos e a jogaram na minha frente. Expliquei a situação a ela, fiz a intimação. Coitada, estava assustadíssima. Havia sofrido uma agressão desnecessária, o que demonstra a idiotice que é cumprir ordens judiciais em certos lugares onde o Estado é ausente, em que o jurisdicionado é exposto à violência dos traficantes, e não há ninguém para protegê-lo. Então o líder veio falar comigo: ‘Olha, se você me aparecer aqui de novo, eu não vou conseguir evitar que esses malucos te matem’. Eu só concordei e fui embora.
Quando saí da comunidade, me dei conta enfim de como estivera próximo da morte… E a primeira coisa que vi à minha frente foi um carro da Polícia Militar. Aí eu perdi o controle. ‘Vocês estão malucos! Quase me mataram lá, eles vendem drogas nesse ponto ao lado de vocês!’, gritei. Um dos PMs respondeu: ‘Ah, chefia, isso faz parte. Eles não podem vir aqui e nós não podemos ir ali. Por enquanto é assim…’
Depois disso, eu só vou a comunidade quando é para conceder benefício previdenciário para quem está em situação de miserabilidade. Tem lugar que não dá pra ir. A maior parte das favelas do Rio de Janeiro se tornou um território inacessível para quem cumpre ordem judicial.”
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