Relato de Oficial de Justiça sobre riscos da profissão segue atual
É fato que a atividade do Oficial de Justiça está entre as mais perigosas e estressantes do serviço público. A despeito disso, a realidade desses profissionais ainda não é valorizada como deveria. Como atesta este relato, do início dos anos 2000, do colega Daniel Lara de Oliveira, da cidade de Rio Grande (RS), dirigido à Comissão Interdisciplinar do STF encarregada de elaborar o segundo Plano de Cargos e Salários (PCS) do Judiciário.
“A pressão é permanente: das partes, uma para acelerar a execução, outra para tentar bloqueá-la; dos juízes, no sentido de que sejam cumpridos os mandados, imediatamente e da forma como imaginaram (que muitas vezes não é a melhor e nem exatamente a legal), dos advogados das partes, da família e da gente mesmo, uma vez que quem tem responsabilidade tenta fazer de tudo para dar conta do trabalho”, diz o Oficial de Justiça que trocou a rotina de servidor interno pela nova e se confessou “arrependido”.
Leia a íntegra do texto, publicado originalmente no informativo da Assojaf-RJ.
“Fantasia e realidade”
Eis a manifestação do Oficial Daniel Lara de Oliveira (RS) aos membros da Comissão Interdisciplinar do STF, encarregada de elaborar o segundo Plano de Cargos e Salários (PCS) do Judiciário.
“Prezados Senhores:
Foi com espanto que recebi um e-mail, hoje pela manhã, a respeito de como esta comissão entenderia as funções e as tarefas a que estão afetos os Oficiais de Justiça no Brasil. Exerci, durante quinze (15) anos, cargo público concursado no Tribunal do Trabalho do RS, possuindo uma carreira atraente, promissora e até certo ponto rentável. Após ouvir, por inúmeras e inúmeras vezes, de diversos colegas, dizer que “o bom era ser oficial de justiça”, “que eles é que eram felizes”, “que não tinham horário”, “serviço sem stress”, “autonomia dentro do serviço público”, “ganham bem e trabalham pouco”, “carteiro de luxo” etc., caí nessa. Pois fiquem sabendo que o estereótipo não é nada mais que isso, um tremendo de um estereótipo.
Passei em um concurso público para Oficial de Justiça na JT. Desde então, minha vida virou um caos: tive de comprar, com meu dinheiro, R$ 20.000,00, patrimônio meu e de minha família, um veículo para trabalhar para a União, tendo percorrido em um ano e meio 72.000 quilômetros, nas piores estradas, praticamente terminando com o carro; nesse período, eu e uma colega cumprimos aproximadamente 4.700 mandados; paguei, do meu bolso, a maior quantidade de litros de gasolina, visto que o TRT pagava, em 2003, R$ 200,00 por mês com esta finalidade (depois passou a pagar R$ 500,00), o que, de qualquer forma, não cobre os custos; passei a trabalhar 12, 14 horas por dia, inclusive nos sábados e domingos, uma vez que diversos mandados assim determinam; passei a trabalhar também à noite corriqueiramente, eis que assim nos é exigido, o que acabou acarretando uma crise familiar, uma vez que minha mulher passou a achar estranho o fato de eu trabalhar à noite.
A pressão é permanente: das partes, uma para acelerar a execução, outra para tentar bloqueá-la; dos juízes, no sentido de que sejam cumpridos os mandados, imediatamente e da forma como imaginaram (que muitas vezes não é a melhor e nem exatamente a legal), dos advogados das partes, da família e da gente mesmo, uma vez que quem tem responsabilidade tenta fazer de tudo para dar conta do trabalho. Isso sem falar nos inúmeros distúrbios psiquiátricos por que passam os colegas, que muitas vezes sucumbem às constantes pressões. Basta, para tanto, fazermos um levantamento junto aos Tribunais em relação àqueles colegas que admitem os problemas para a administração, pois tenho vários colegas que enfrentam problemas, estão em tratamento, mas que não levam ao conhecimento das administrações. Isso sem falar na insegurança permanente que enfrentamos, tendo de tomar decisões absolutamente sozinhos (não podemos chegar para o colega do lado e perguntar: o que tu farias?).
Entrar na vila, procurar o “cara”, ir atrás, procurar, procurar, esperar. Correr riscos sem qualquer auxílio. Saliente-se que, atualmente, a própria polícia é extremamente reticente nesse sentido, ou seja, de dar apoio ao cumprimento, apesar de muitos juízes acharem que a simples autorização de apoio policial expressa no mandado resolve todo e qualquer problema.
Gostaria de convidar todos os membros dessa comissão para terem alguns dias de trabalho juntamente comigo ou qualquer de meus colegas Oficiais daqui de Rio Grande, RS. Assim, como ex-servidor interno, há um ano e meio exercendo a função de Oficial, lhes digo, com a mais absoluta convicção: não existe elemento de comparação. Digo mais: eu, como a grande maioria de meus colegas que fizeram essa opção, não têm outro sentimento que não o de arrependimento profundo.
Peço, assim, que Vossas Senhorias busquem um maior conhecimento acerca da real situação da categoria dos Oficiais, sob pena de, não o fazendo, aí sim, gerar uma profunda cisão entre os diversos segmentos da categoria. Não se trata de privilégios, muito antes pelo contrário: trata-se de corrigir distorções existentes no serviço público que são geradas pela própria inanição do Poder Público.
Atenciosamente,
Daniel Lara de Oliveira”